Povos Indígenas


Investigação de violações de direitos humanos dos indígenas na ditadura busca dar luz aos massacres do passado e do presente

A atuação mais recente do MPF no campo de Justiça de Transição é a que apura as graves violações de direitos humanos cometidas pelo regime militar contra indígenas e populações tradicionais. Em 25 de fevereiro de 2013, foi criado no âmbito da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão (Indígenas e Populações Tradicionais) o Grupo de Trabalho Violações dos Direitos dos Povos Indígenas e o Regime Militar.

Uma das metas do grupo, visando estabelecer a verdade e trazer o conhecimento dos fatos à sociedade, é divulgar documentos relativos à atuação. Nesse sentido, uma das primeiras providências tomadas pelo grupo foi disponibilizar em sua página a íntegra do Relatório Figueiredo.

O documento foi produzido em plena ditadura militar, pelo procurador Jader Figueiredo, que, entre os anos de 1967 e 1968, percorreu o Brasil a serviço do Ministério do Interior e apurou denúncias de crimes cometidos contra populações indígenas noticiados desde o início dos anos 60. O relatório, que apontava vários crimes e indicava autoria, foi divulgado numa entrevista coletiva em 1968 e teve grande repercussão no Brasil e no exterior. Logo depois foi editado o Ato Institucional nº 5, que endureceu o regime militar. O documento ficou desaparecido por 45 anos e foi encontrado no Museu do Índio do Rio de Janeiro, em 2013.

Em fevereiro de 2014, o GT obteve a primeira decisão judicial favorável: a Justiça Federal do Amazonas concedeu liminar em ação civil pública movida pelo MPF, determinando que a União e a Fundação Nacional do Índio (Funai) adotem medidas para reparar os danos permanentes causados aos povos indígenas Tenharim e Jiahui em decorrência da construção da Rodovia Transamazônica (BR-230) em seus territórios, durante a ditadura militar.

Em março de 2014, o GT anunciou que focaria suas primeiras atividades em três grandes casos: as violações aos direitos do povo Waimiri-Atroari, no Amazonas; as atividades desenvolvidas durante o funcionamento do Reformatório Krenak; e as atividades da Guarda Rural Indígena (Grin), em Minas Gerais.

O reflexo da ditadura militar em relação aos povos indígenas é matéria que apresenta peculiaridades por se tratar de populações que historicamente são vítimas da ação repressiva e genocida do Estado. A própria Comissão Nacional da Verdade não conseguiu identificar todas as vítimas fatais no período investigado, mas estima em mais de 8 mil o número de mortos.

O GT da 6ª Câmara foi criado justamente para avançar nesses casos, e o trabalho do grupo busca definir critérios para qualificar e quantificar as violações aos povos indígenas no âmbito da ditadura militar, propor padrões de medidas de justiça transicional pertinentes com as peculiaridades da causa indígena, auxiliar o trabalho dos procuradores naturais na apuração e adoção de providências em relação a violações dos direitos indígenas na ditadura militar e articular-se com a sociedade civil, com as entidades e com os órgãos para estabelecer constante troca de informações e apoio.

O GT tem justamente a preocupação de trabalhar e identificar violações cometidas contra povos indígenas que repercutem na sua realidade até hoje, desde questões relacionadas à políticas de extermínio muito claras que foram adotadas em casos de visibilidade, até situações de despojamento do seu território, em situações que são sentidas atualmente com reflexos na sua organização, na sua observância de direitos básicos, e na luta pelos seus territórios. A preocupação do GT é pegar conflitos atuais e investigar como isso tem relação com a ditadura”, afirma o procurador Júlio José de Araújo Júnior, coordenador do grupo.

Para o procurador Antonio do Passo Cabral, integrante do grupo, o GT surgiu também com o objetivo de dar voz a uma população que sempre foi vítima, mas cuja luta em relação à reparação de seus direitos violados no regime ditatorial não teve a mesma visibilidade de outras violações de direitos humanos. “A gente percebeu que os indígenas sofreram muitas violações, violações variadas, e que eles não tinham alguém que falasse por eles naquela época”, afirmou.

Ainda em 2014, o GT fez os primeiros contatos com o povo Waimiri-Atroari, no Amazonas. Também em março de 2014, o MPF/AM, em parceria com o Comitê da Verdade no Amazonas, promoveu o seminário “Amazônia contra o autoritarismo”, no qual foram ouvidas testemunhas e colhidos documentos para atuar na região.

O caso Krenak foi o segundo a ter atuação dedicada de procuradores do GT. A primeira medida relativa aos Krenak foi proposta em março de 2015 pelo ex-procurador regional dos Direitos do Cidadão de Minas Gerais, Edmundo Antonio Dias Netto Júnior, que requereu anistia política coletiva ao Povo Indígena Krenak à Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Sobre esse tema, a 6ª Câmara de Coordenação e Revisão e os procuradores do GT expediram a Nota Técnica nº 03/2017-6CCR/MPF na qual se afirma a possibilidade de anistia coletiva ao povo Krenak.

Em dezembro de 2015, o MPF em MG moveu ação civil pública para que o Estado brasileiro reconheça as graves violações de direitos humanos cometidas contra o povo indígena Krenak durante a ditadura militar, adotando medidas de reparação em favor de sua cultura, e conclua o processo de demarcação da Terra Indígena de Sete Salões, entre outras.

O povo Krenak é um exemplo das graves violações sofridas por diversos povos indígenas durante o período do regime militar. Ele oferece um recorte dessas violações que são uma continuação daquelas que ocorrem desde o descobrimento e a colonização do país”, afirma o procurador Edmundo Dias, responsável pelo caso.

Os depoimentos de indígenas Krenak e Maxacali realizados entre maio e agosto de 2014 pelo MPF durante o trabalho de investigação das graves violações de Direitos Humanos dos Krenak resultaram no no documentário Guerra sem Fim, lançado em setembro de 2016 a partir da ideia da então procuradora da República Inês Virgínia Prado Soares. O filme contou com apoio da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) e da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós-Graduação (Andhep).

Em dezembro de 2016, a 14ª Vara Federal de Belo Horizonte concedeu liminar na ação civil proposta pela PRDC/MG e determinou que a Funai concluísse, em um ano, o processo de identificação e delimitação da Terra Indígena Krenak de Sete Salões/MG, como compensação pelas graves violações de direitos humanos sofridas pelo povo Krenak durante o regime militar. A liminar prevê várias outras medidas de preservação da memória das violações de DH sofridas pelo povo Krenak na ditadura.

No mesmo mês de dezembro, o MPF em Mato Grosso moveu ação contra a Funai, a União, o estado de Mato Grosso e 13 herdeiros das terras da Fazenda Suiá-Missu por violações dos direitos dos povos Xavante de Marãiwatsédé durante a ditadura. Entre os pedidos do MPF, destaca-se a realização de uma cerimônia na Terra Indígena Marãiwatsédé com a presença do primeiro escalão do Poder Executivo federal e estadual para que seja feito um pedido público de desculpas ao povo Xavante pelas graves violações de direitos humanos perpetradas contra a etnia durante o regime militar.

Após mais de três anos de apuração e viagens à terra Waimiri-Atroari, o MPF levou à Justiça a ação civil pública sobre o massacre dos Waimiri-Atroari na abertura da rodovia BR-174 (Manaus-Boa Vista), durante a ditadura. Na ação, o MPF exige a reparação dos danos causados, por meio de indenização no valor de R$ 50 milhões, pedido oficial de desculpas e inclusão do estudo das violações sofridas pelos indígenas nos conteúdos programáticos escolares, e requer também garantias de direitos para que tais episódios não se repitam.

Um dos pedidos da ação almeja a retificação da área da reserva Waimiri-Atroari para inclusão do trecho referente à BR-174 como parte da terra indígena.

Em 14 de abril de 2018, o MPF lançou o documentário “Marãiwatsédé: O Resgate da Terra” , que conta a história da remoção forçada dos Xavante de sua terra tradicional durante a ditadura militar e a luta pela retomada do território.

Com 30 minutos de duração, o documentário é uma parceria entre a 6ª Câmara de Coordenação e Revisão (Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais) e a Secretaria de Comunicação Social do MPF. O filme conta a história da luta de mais de 40 anos dos Xavante para recuperar a posse do território de onde foram removidos à força em 1966, e tem depoimentos das vítimas. A remoção forçada foi resultado de um consórcio entre o regime militar e fazendeiros durante a ditadura. Cerca de um terço da população de mais de 263 índios morreu como resultado da remoção.

Desde dezembro de 2016, um grupo de procuradores vinculados à 6ª Câmara de Coordenação e Revisão, por delegação do procurador-geral da República, acompanha o inquérito civil público relativo à inundação de terras de ocupação tradicional do povo Guarani pela barragem da Usina Hidrelétrica de Itaipu, construída durante o regime militar.

Além dos casos acompanhados pela 6ª Câmara de Coordenação e Revisão e pelo Grupo de Trabalho Violações dos Direitos dos Povos Indígenas e Regime Militar, há procedimentos instaurados em unidades do MPF acerca de outros casos, como o massacre do Paralelo 11 (envolvendo os Cinta-Larga),  as violências praticadas contra os Aikewara durante a repressão à Guerrilha do Araguaia e a possível prática de tortura no Reformatório Agrícola Indígena Krenak.