Atuação da PGR


Atuação da PGR em Justiça de Transição buscou articulação institucional e balizou atuação de procuradores em todo o país

A atuação em Justiça de Transição iniciada pelos procuradores da República em São Paulo e pela Força-Tarefa Araguaia abriu no Ministério Público Federal o debate sobre o alcance da Lei da Anistia de 1979 e o que era possível fazer ou não quanto à responsabilização civil e penal de agentes da repressão responsáveis por graves violações de direitos humanos.

Após o bem-sucedido início de trabalho dos procuradores, com a identificação dos restos mortais de dois desaparecidos em São Paulo e as investigações no Araguaia , o MPF ampliou a interlocução com a sociedade, a academia e especialistas internacionais sobre o tema, ao realizar em maio de 2007, em São Paulo, o Debate Sul-Americano Sobre Verdade e Responsabilidade em Crimes Contra os Direitos Humanos, cujas conclusões resultaram na Carta de São Paulo , um postulado com uma série de medidas que o Estado Brasileiro deveria adotar para a promoção da justiça, a revelação da verdade e a proteção da memória.

Entre as medidas propostas na carta estava a busca por transparência e a abertura de documentos relacionados à ditadura militar, por meio da reiteração de solicitações ao então procurador-geral da República, Antonio Fernando Souza, para que propusesse Ação Direta de Inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal em face das Leis nº 8.159/91 e 11.111/05, que estabeleciam as regras de sigilo de documentos públicos.

Pouco menos de um ano depois da edição da carta, em 19 de maio de 2008, Antonio Fernando apresentou ao STF a ADI 4077, questionando as duas leis citadas acima. A Lei nº 8159/91 havia sido modificada em 2004 pela Medida Provisória nº 228/04, mais tarde convertida na Lei nº 11.111/05, uma modificação que permitiu que a Comissão de Averiguação e Análise de Informações Sigilosas, subordinada ao Poder Executivo, prorrogasse indefinidamente o prazo de sigilo de documentos classificados no mais alto grau de confidencialidade, o que poderia implicar no sigilo eterno de documentos sobre a ditadura militar.

Além da questão de acesso à informações sobre o período, a PGR começou a atuar na esfera penal em relação ao tema ao tratar de extradições solicitadas por países latino-americanos que vinham lidando há mais tempo com a questão da Justiça de Transição. Um dos casos de extradição mais importante foi o do major uruguaio Manuel Juan Cordero Piacentini (Extradição nº 974-5).

Piacentini havia participado de ações da Operação Condor, cooperação militar que existiu entre os países do Cone Sul, nos anos 70 e 80, para a eliminação de adversários políticos. Tanto o Uruguai como a Argentina haviam pedido a extradição do militar uruguaio, que havia fugido para o Brasil. Um dos crimes do major foi o sequestro de Adalberto Soba e de outras pessoas de sua família. Soba segue desaparecido até hoje e o caso é tratado como desaparecimento forçado na Argentina. A tese de Antonio Fernando foi a de que o tipo de desaparecimento forçado é equivalente ao sequestro no Brasil, crime permanente tanto na Argentina quanto no Brasil, uma vez que a prescrição só começa após a ação do agente ser concluída. “A despeito do tempo decorrido, não se pode afirmar que as vítimas estejam mortas porque seus corpos jamais foram encontrados, de modo que ainda subsiste a ação perpetrada pelo extraditando”, afirmou no parecer o PGR.

A tese da PGR prevaleceu e Piacentini foi extraditado. O entendimento firmado nessa extradição tornou-se jurisprudência e foi citado posteriormente pelo MPF nas seis primeiras denúncias oferecidas à Justiça Federal por crimes ocorridos na ditadura militar. O foco das primeiras ações penais foi justamente o de casos de sequestro com o desaparecimento da vítima, tal como aconteceu com as vítimas do Araguaia relacionadas na primeira denúncia (Hélio Luiz Navarro de Magalhães, Maria Célia Corrêa, Daniel Ribeiro Callado, Antônio de Pádua e Telma Regina Cordeira Corrêa), e também com Aluizio Palhano, Divino Ferreira de Souza, Edgar Aquino Duarte, Hiroaki Torigoe e Mário Alves, cujos desaparecimentos deram origem às denúncias criminais subsequentes.

Paralelamente à atuação no Supremo Tribunal Federal, a cúpula do MPF se articulou. Em 2010, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, órgão que coordena a atuação do MPF em Direitos Humanos, editou a Portaria nº 19/2010 e criou o Grupo de Trabalho Direito à Memória e à Verdade para a promoção do debate na instituição sobre os temas da Justiça de Transição e criar metas e procedimentos de atuação coordenada.

Em 2011, após a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos ter condenado o Brasil no Caso Gomes Lund e ordenado o país a promover a persecução penal desses casos, a 2ª Câmara de Coordenação e Revisão (2ª CCR), que coordena a atuação do MPF na área criminal, estudou a decisão da corte minuciosamente e chegou a conclusão de que é dever do MPF realizar a persecução penal das graves violações de direitos humanos cometidas na ditadura contra dissidentes do regime militar. A 2ª CCR, então coordenada por Raquel Dodge, fixou que a decisão internacional devia ser cumprida, independentemente do entendimento do Supremo Tribunal Federal que, em 2010, ao julgar a ADPF 153, promovida pela Ordem dos Advogados do Brasil, julgou constitucional a Lei de Anistia. Ainda em 2011, a Câmara instituiu o Grupo de Trabalho de Justiça de Transição, para coordenar a atuação institucional do MPF na esfera criminal.

Em agosto de 2013, com apoio da PGR, foi lançado o site Brasil: Nunca Mais Digit@l , que trouxe para a internet o acervo que resultou no livro clássico Brasil: Nunca Mais, antes recluso aos arquivos em papel e em microfilme, disponíveis apenas para os pesquisadores com possibilidade de ir à Universidade de Campinas, Brasília ou ao exterior. O BNM Digital reúne o acervo que resultou no livro e é possível consultar diretamente o acervo indexado (processos do Superior Tribunal Militar, relatório e arquivos do Conselho Mundial de Igrejas e da Comissão Justiça e Paz) e sumários que o Ministério Público Federal elaborou a respeito das 710 ações compiladas no livro, nos quais as vítimas relatam as graves violações de direitos humanos sofridas nos porões da ditadura.

Em 2014, a PGR volta a atuar judicialmente em questões de Justiça de Transição. Em agosto daquele ano, o então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, deu parecer parcialmente favorável à ADPF 320 , proposta pelo PSOL, que pede o cumprimento das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos pelo ordenamento jurídico brasileiro. Para o procurador-geral, crimes graves cometidos por agentes do Estado, civis ou militares, durante a ditadura militar são crimes contra a humanidade e, portanto, imprescritíveis e insuscetíveis de anistia, conforme definiu a CIDH. “Esses crimes devem ser objeto de adequada investigação e persecução criminal, sem que se lhes apliquem institutos como anistia e prescrição”, afirmou o procurador-geral da República.

Em novembro de 2014, Janot e a procuradora-geral da Argentina, Alejandra Gils Carbo, assinaram em Buenos Aires um acordo de cooperação internacional para a formação de uma equipe conjunta de investigação para apurar crimes cometidos pelas ditaduras militares dos dois países. Foram investigadas as ações da Operação Condor, uma parceria entre órgãos de repressão das ditaduras da América do Sul que existiu nos anos 1970 e 1980. Em janeiro de 2015, a Equipe Conjunta de Investigação sobre Justiça de Transição (ECI-JT) foi formalizada pela procuradora-geral da República em exercício, Ela Wiecko.

Também, no tocante à articulação, em outubro de 2016, o procurador-geral da República em exercício, José Bonifácio Borges de Andrada, autorizou a criação da Força-Tarefa Araguaia no âmbito do Grupo de Trabalho Justiça de Transição, da 2ª CCR. A FT atua em conjunto com procuradores da República em Marabá (PA), nas investigações e nos atos de persecução penal relativos à Guerrilha do Araguaia, nos casos descritos na sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no Caso Gomes Lund vs Brasil.

Em fevereiro de 2018, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, manifestou-se na Reclamação 18.686, ajuizada pelos réus denunciados pelo MPF em maio de 2014 pela tortura, pela morte, pelo sequestro e pela ocultação de cadáver do deputado Rubens Paiva. O processo foi aberto pela 4ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro, mas a ação foi trancada em setembro daquele ano por uma liminar do ministro Teori Zavascki. Na manifestação, a PGR pede a continuidade da ação penal em primeiro grau. Para a PGR há “a necessidade de reflexão a respeito do alcance da anistia reconhecida na ADPF 153”, especialmente diante da “natureza permanente do crime de ocultação de cadáver”, que afasta a prescrição.

O apoio da PGR à atuação do MPF em Justiça Transicional, embora não uniforme em todo o período, é atualmente um fator essencial para o sucesso da instituição na matéria. Especialmente nas últimas gestões, Raquel Dodge e  Rodrigo Janot se dedicaram diretamente a reverter o entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre a validade da Lei de Anistia e a incidência de prazos prescricionais na investigação e sanção de crimes contra a humanidade. Ainda que a matéria siga pendente de deliberação pela Corte, o MPF, pelo seu órgão central, responde aos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil de inadmitir a impunidade a crimes internacionais, tais como aqueles praticados pelos órgãos da repressão à dissidência política durante a ditadura militar. Da mesma forma, a Procuradoria-Geral da República, por seus diversos órgãos, articula ações nas diversas dimensões da Justiça de Transição, fazendo do Ministério Público Federal brasileiro um paradigma internacional na implantação abrangente e concomitante de todos os seus pilares.